+ Seqüência do Santo Evangelho
segundo Lucas
Naquele tempo, Jesus foi para uma cidade chamada Naim. Com
Ele iam os discípulos e uma grande multidão. Quando chegou à porta da cidade,
eis que levavam um defunto para enterrar; era filho único e sua mãe era viúva.
Grande multidão da cidade ia com ela. Ao vê-la, o Senhor teve compaixão dela e
disse-lhe: «Não chores!» Depois aproximou-Se, tocou no caixão, e os que o
transportavam pararam. Então Jesus disse: «Jovem, Eu te ordeno, levanta-te!» O
morto sentou-se e começou a falar. E Jesus entregou-o à mãe. Todos ficaram com
muito medo e glorificavam a Deus, dizendo: «Um grande profeta apareceu entre
nós, e Deus veio visitar o seu povo».
Homilia
A página evangélica com a
qual a Providência divina nos presenteou neste domingo é de uma beleza
literária ímpar. A narrativa se inicia com o encontro de duas procissões: uma,
formada pelos discípulos e uma grande multidão que seguia a Jesus; a outra, uma
procissão fúnebre, guiada pelo féretro do filho de uma viúva e seguida também
por uma copiosa multidão. Uma procissão era encabeçada pelo Filho único de
Deus, a Luz da Vida; a outra procissão, porém, era guiada pelo esquife do filho
único de uma viúva, receptáculo de um cadáver, sinal sensível da presença da
Sombra da Morte. Sombra e Luz, Vida e Morte: neste “chiaroscuro” narrativo,
revela-se para nós a Graça, a Graça que se manifesta justamente na “des-Graça”.
Caros irmãos e irmãs em Cristo, aqui cabe-nos fazer um breve parêntese sobre o
significado desta situação pontual de des-Graça: a morte é o destino inexorável
de todo vivente, e uma das poucas certezas que temos nesta vida. Na Sagrada
Escritura, apesar da diversidade de tradições que compõem o mosaico da teologia
bíblica, podemos perceber uma certa evolução na concepção da morte,
compreendida inicialmente como o ponto final da existência humana consciente,
evoluindo gradativamente, a partir da crença na Ressurreição da carne, como uma
passagem desta existência para um estado de beatitude ou condenação, segundo a
adesão do israelita à Torá. Em todo caso, a morte é sempre vista como um evento
trágico, como uma desgraça, e para um israelita não poderia haver pior desgraça
do que a morte do filho único de uma viúva, pois a herança, isto é, a posse da
terra, era garantida pelo filho primogênito, em caso de morte do chefe de
família. No Antigo Testamento, a posse da terra era o sinal da Bênção, e a sua
perda o sinal da desgraça. Nesta concepção, a viúva, que perde o filho único,
consequentemente perde também a posse da terra e, por conseguinte, a Bênção. Aqui
está a tragicidade do relato evangélico em consideração. Por isso, Nosso Senhor
a olha com compaixão, não se comove tanto pelo defunto, mas por sua mãe, como nos
indica a letra do Evangelho deste domingo: aquela pobre mãe, duplamente
desgraçada por ter perdido o filho e a herança, isto é, o sinal da Bênção, torna-se alvo da misericórdia de Deus e ocasião para
que nosso Senhor transmitisse um ensinamento: ao imperar à viúva: “Não chore”, nos
indica duas coisas: a primeira, que ele, enquanto Salvador, tem o poder de
mudar aquela situação irremediável; a segunda, que a morte não é o ponto final
de nossa existência: mais adiante, no mesmo Evangelho de S. Lucas, no funeral
da filha do chefe da sinagoga, Jesus exclama: “Não choreis, pois a menina não
morreu, mas dorme”. Com isso, indiretamente, também nos indica que não é essa a
morte que deve ser temida e pranteada, mas aquela morte da alma, que nos separa
de Deus e nos coloca no inferno: esta é a verdadeira morte e a perda total da
Bênção de Deus, da verdadeira Terra Santa, da Jerusalém celeste, nossa Pátria:
o céu. E para efetivar a salvação, Jesus realiza uma verdadeira liturgia:
através de seu gesto, de tocar em silêncio o esquife do defunto e pronunciar a
ordem ao defunto para que se erguesse, temos um sinal sensível da graça
invisível: é por isso que para nós, católicos, um sacramento é sempre um evento
salvífico: através dos sacramentos, Nosso Senhor também, nos toca, nos cura,
nos liberta, nos ressuscita. Jesus, tocando-nos a nós, mortos pelo pecado, tão
impuros como aquele cadáver segundo a lei de Moisés, também nos purifica,
santificando-nos com a sua divina presença.
Um segundo elemento que convém notar
neste evento salvífico da ressurreição do filho da viúva é que um milagre nunca
é operado como show exibicionista, mas visa sempre suscitar a fé, seja no
agraciado, seja nas testemunhas do milagre e naqueles que darão crédito a essas
testemunhas. Segundo o testemunho das Escrituras, nós somos salvos pela fé,
constituindo este um dos axiomas principais da soteriologia bíblica seja do
Antigo quanto do Novo Testamento. Com isso, aquele gesto pontual de ressuscitar
um defunto torna-se, na verdade, um milagre mais amplo e mais abrangente: pela
fé, Nosso Senhor transforma aquela multidão de curiosos em uma assembleia
litúrgica, em uma ekklesia de louvor, isto é, em uma Igreja: ἔλαβε δὲ φόβος πάντας καὶ ἐδόξαζον τὸν Θεόν, (Todos
ficaram com muito medo e glorificavam a Deus). Neste pequeno versículo temos dois elementos importantes no
fenômeno religioso e que estão em jogo e correlação neste segundo milagre: Foboj (temor) e Doxa (louvor): O temor é o primeiro
sentimento que temos diante de algo desconhecido e inusitado, de algo maravilhoso
e inexplicável. Este temor pode ser identificado com aquilo que os Gregos
designavam pelo termo eusebeia, isto é, profundo respeito e
reverência. Os Latinos traduziram-na por pietas (piedade filial), e é
deste profundo respeito religioso que brota o louvor. O louvor é, por sua
natureza, um ato de fé em Deus que manifesta o seu braço onipotente no tempo e
no espaço, na História da Salvação e na nossa existência histórica individual. O
conteúdo do louvor também corrobora o que temos dito até agora: “Propheta Magnus surrexit in nobis, Deus
visitavit plebem suam”. A multidão, tomada de temor diante daquela
manifestação divina, reconhece em Cristo não só a presença de Deus, mas o
cumprimento das promessas realizadas por Deus no Antigo Testamento, como nos
atesta o evangelista. Através do milagre, ao suscitar a fé no coração dos
circunstantes, Jesus não apenas ressuscitou aquele jovem, mas a todos, uma vez
que a fé suscita a contrição, e esta, quando é perfeita, apaga uma multidão de
pecados.
Caros irmãos e irmãs, no início havia
dito que duas procissões se encontravam às portas da cidade de Naim. Na verdade
há uma terceira: a nossa, formada por esta assembleia reunida em nome de
Cristo, nesta noite. A nós o Cristo se faz presente através desta liturgia e
tocando-nos através dos ritos e das santas palavras pronunciadas na liturgia,
também quer nos ressuscitar, quer nos salvar de uma vida estéril, tenebrosa e
tediosa para uma nova vida, aquela vida gloriosa dos filhos de Deus, que já se
inicia aqui e agora, pois nós não somos deste mundo, somos chamados a ser
cidadãos de uma outra Pátria, a Cidade de Deus, ao qual sejam dadas a glória, o
poder e a honra pelos séculos dos séculos. Amém.
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